Maior estrela do cinema francês, Catherine Deneuve visitou o Brasil em 1984 e falou à Veja

Por Fonte83 - 24/01/2021

Maior estrela do cinema francês, Catherine Deneuve visitou o Brasil em 1984 e falou à Veja. A entrevista feita por Paulo Moreira Leite foi publicada nas páginas amarelas da revista e o Fonte83 a resgata neste domingo.

Catherine é considerada um modelo de elegância e beleza gálica e uma das mais respeitadas atrizes do cinema francês e mundial. Nos anos 1960, Deneuve fez a reputação de símbolo sexual frio e inacessível através de filmes em que interpretava donzelas lindas e frígidas como A Bela da Tarde de Luis Buñuel e Repulsa ao Sexo de Roman Polanski.

Por que a imagem de Catherine Deneuve nas telas continua a ser a da mulher fria e imperturbável?

Eu não consigo imaginar que as pessoas ainda digam isso de mim depois de tanto tempo. É verdade, tenho uma imagem um pouco fria. Mas hoje sou um pouco menos tímida, menos reservada. Mas também sou uma pessoa que jamais terá comportamento exuberante. Estou mais para uma loira americana que para uma morena latina.

Mas o seu tipo, hoje, tornou-se clássico no cinema…

As pessoas sempre guardam uma imagem de uma atriz. Não somos catalogadas, mas existe um estilo. Eu não sou classificada como atriz de comédia, embora adore as comédias do cinema americano, por exemplo. Fiz duas ou três, mas não são esses filmes que as pessoas lembram quando pensam em mim.

Também é difícil imaginá-la dando uma gargalhada em cena…

Certo, mas sou alguém que ri muito facilmente. As pessoas só me conhecem por meio de alguns filmes, de fotos sofisticadas, não veem como eu vivo. E, como tenho tipo físico bastante clássico, sempre faço a mulher mais séria. Acho que isso está mudando nos meus filmes mais recentes. Mas também não existem muitas comédias para mulheres.

Como são os seus novos personagens?

Acabei de filmar em Montreal, no Canadá, Música e Palavras, com Elie Chouraqui, que já foi assistente de Claude Lelouch. Dessa vez, sou uma mulher realista, que deixa o maridom cria uma empresa, cuida dos filhos, se interessa por um cantor jovem. Em setembro, depois de voltar do Brasil, devo rodar Terra Queimada, com André Techiné, na Tunísia. É um filme violento, que se passa durante a guerra da Argélia. O confronto dos personagens é que importa, quase não há cenas de ação.

Como são construídos os seus personagens? Há algum método pessoal para elaborá-los?

Com muito mais intuição do que as pessoas imaginam…

Mas, antes de rodar uma cena, é preciso alguma concentração especial?

Não gosto que haja silêncio mortal à minha volta. Ao contrário, certa agitação até ajuda a me concentrar. Se há muito silêncio, fico com a sensação de que terei algo muito pesado a enfrentar.

Como é que aprendeu a representar?

Trabalho muito intuitivamente. Nunca frequentei curso de teatro. O que eu faço é ler repetidas vezes o roteiro e muitas vezes volto a trabalhar nele com o diretor.

Hoje o seu entusiasmo pelo cinema continua o mesmo dos tempos de estreia?

Mais do que nunca. Não sei se porque fiz mais filmes ou porque já fiz também muitas coisas diferentes.

Só que agora é sua escolha dos papéis e dos filmes de que participar…

Sob esse aspecto tenho de confessar que sempre tive muita sorte. Fui até mesmo mimada. Sempre escolhi meus filmes. Mas é preciso estar realmente contente para fazer cinema, senão pode ser apenas um trabalho ridículo. Eu não poderia mais aceitar fazer cinema de maneira rotineira, pois sempre trabalhei com pessoas de quem gostava e com quem me sentia feliz.

É mais simples trabalhar com os novos diretores do que sob o comando de alguém como Luis Buñuel?

Claro que não é mais fácil. Quando se fala de Buñuel, fala-se de alguém que era mesmo excepcional. Mas não se pode comparar todo mundo a Buñuel, como também não podem comparar os diretores de cinema entre si, porque são muito diferentes em sua maneira de trata os atores. Não há uma regra. O que conta para mim são as intenções. As intenções e a forma de transformá-las em imagens.

Como atriz, o que você espera de um diretor?

Eu nunca espero a mesma coisa de cada diretor. É preciso que cada um tenha uma coerência interna entre o que diz, o que faz, o que escreve e o que pretende contar.

Como foi a sua experiência com Luis Buñuel? Ele a inclui de forma muito favorável em seu livro de memórias, O último suspiro.

Tristana foi muito mais agradável que Belle du Jour. Em Tristana eu tinha um papel ambíguo, era uma menina, depois uma moça, uma mulher… Era uma personagem que tinha mais variações. Prefiro assim. Além disso, Buñuel estava filmando na Espanha e sentia-se feliz em voltar ao seu país. Estava mais aberto, menos tenso. Em Paris ele era sempre assediado por seus produtores, vivia no hotel. Voltar à Espanha, falar sua língua, era algo muito importante para ele. De qualquer modo, Buñuel tinha certo pudor em dizer as coisas. Preferia colocar os atores em situações em que eles fizessem exatamente o que ele queria.

Quem foi o grande diretor, o mestre da sua carreira?

Eu não gosto da palavra mestre…

Por quê?

Porque parece algo pomposo, parece que é preciso ser “gênio” para ser mestre. Eu não adoro ninguém. Tenho muita admiração por certas pessoas, mas não adoro ninguém.

Como estão os seus convites para novos filmes?

Atualmente tenho quatro roteiros para ler. Em geral recebo um roteiro por mês.

Quais seus critérios para aceitar um papel?

Gosto do que me parece original, mas hoje em dia, infelizmente, isso está cada vez mais raro. Aceitei filma Música e Palavras no Canadá porque era um filme que não havia sido escrito para mim. Isso também me atrai, pois após rodas muitos filmes há o perigo de surgir um personagem fixo, que de certa forma corresponde à imagem que as pessoas têm de mim. Quando encontro esse personagem nos roteiros que me enviam, mesmo que me sinta atraída por minha própria imagem, fico com preguiça de fazê-lo.

Já lhe aconteceu de alguém oferecer um roteiro em alguma festa ou ocasião social?

Acho isso muito oportunista. Detesto que alguém, no meio da noite, me diga: “Ah, tenho um roteiro para lhe mostrar”. Se não fosse para mim, o mesmo roteiro então serviria para Isabelle Adjani ou Marlene Jobert? Não gosto que as pessoas só pensem em mim quando me veem.

Nunca lhe passou pela cabeça trocar Paris por Hollywood?

Cheguei a filmar em Holywood, mas preferi voltar à Europa. Não gostaria de viver lá. Penso que para fazer uma grande carreira, muito importante, talvez fosse preciso viver ou passar uma grande temporada lá. Não sei se seria capaz. Afinal, sou europeia. Sou muito europeia, aliás. Ao contrário do que passa a minha imagem loira na tela, eu me sinto mediterrânea.

Alguma vez já participou de grandes campanhas feministas?

É uma questão de caráter. Essas campanhas não fazem parte do meu modo de ser. Existem mulheres que se manifestam, que vivem à frente das outras. Não sou assim, mas isso não me impede de apoiá-las. Eu me sinto completamente solidária com as mulheres que tentam ser independentes, mesmo que elas tenham posições mais extremadas que as minhas. Só tomei uma posição extrema em casos como o da liberação do aborto, que precisava ser apoiado.

Foi difícil tornar-se uma mulher independente?

Não se trata de escolher ser independente, simplesmente de não ser dependente. No meu caso, em me distingui mais pelas recusas que pelas aceitações. Eu recuso as convenções coletivas – fora as do sindicato, é claro. Eu me recusei a permanecer uma mulher casada.

Isso é uma recusa ao casamento como instituição?

Não sou contra o casamento, mas não aceito que alguém se case apenas porque espera um filho.

No caso do nascimento dos seus dois filhos, foi uma escolha calculada não se casar?

Foi uma escolha. Na verdade, não foi uma questão absoluta – “não, não me caso”. Mas sempre me vi em situações em que essa era a melhor solução.

Apesar de gostar tanto de cinema, quais são os planos para seu filho Christian, que, parece, quer tentar o mesmo caminho?

Sou totalmente contra. Mas, como o Christian já tem 21 anos, cabe a ele tomar a decisão. Infelizmente…

Por quê?

É muito mais difícil ser ator hoje em dia. Fazem-se menos filmes que antes e há muito mais gente tentando ser ator ou atriz apenas porque quer, não por talento. As probabilidades são limitadas e o desemprego agora é grande.

Mas essas também não foram as suas dificuldades iniciais?

Não. Quando eu fiz Os Guarda-Chuvas do Amor, o musical de Jacques Demy que foi um sucesso mundial, só tinha 19 anos. É por isso que sou um mau exemplo para meu filho.

Você não gosta de televisão?

Não é que eu não goste. Só que a televisão faz diminuir o público das salas de cinema. Na Itália, a situação é dramática. Simplesmente não se vai mais ao cinema. Conheço gente na Itália que pega vinte, trinta, quarenta canais, da Itália, da França, da Áustria, de Mônaco ou de Luxemburgo, mas que não vai ao cinema. É inacreditável.

Ainda assim, diz-se que o seu cachê para fazer um filme está girando em torno de 1 milhão de dólares…

Ninguém, na França, com exceção de Jean-Paul Belmondo, ganha isso. Ninguém. Muito menos eu, que sou mulher…

Não existe igualdade de cachês para atores e atrizes na França?

Não. Como em todas as profissões, as mulheres ganham menos que os homens. É assim também nos Estados Unidos. Se houver dois atores do mesmo nível, a mulher sempre ganhará menos. Não digo isso para chamar atenção sobre o meu caso. Mas é assim que acontece.

Mesmo no caso de um grande nome como Catherine Deneuve?

Isso não faz diferença. O homem sempre ganha mais.

O cinema tornou-a rica?

Ganho bem, mas é menos do que as pessoas imaginam. Sou rica a medida em que ganho muito, mas a verdade é que também gasto demais. Não guardo dinheiro, não faço investimentos, não sou sequer proprietária do apartamento em que vivo em Paris. Mesmo quando ganhava muito menos, nunca consegui guardar dinheiro. O dinheiro nunca se aproveitou de mim. Mas eu, pelo menos, tiro proveito dele.

Como é seu cálculo para o cachê de um filme?

Não posso pedir a mesma quantia para um file que corre o risco de não vender mais que 300.000 ingressos e para outro que pode render 600.000 ou 800.000. Eu não quero que aquilo que eu cobro seja um limite a meus próprios gostos.

Quais são esses gostos?

Não posso me sentir obrigada a só fazer grandes sucessos de bilheteria. Às vezes, gosto de arriscar até em filmes experimentais, se bem que há muito tempo não participo do primeiro filme de ninguém. Mas acho que mudei muito e gosto disso.

Com toda a sua fama é possível levar uma vida normal?

Eu detesto o lado demagógico de dizer ao público: “Sou excepcional, mas também sofro…”. Na verdade, quando se tem filhos, a volta à realidade é muito rápida. Procuro levar uma vida chamada normal. Minha filha vai à escola, e esse ritmo me garante um porto seguro. Não porque eu viva agarrada aos meus filhos. Mas o dia a dia não permite que a realidade se afaste de mim.