Um dos principais compositores e artistas do mundo, Tom Jobim concedeu entrevista às Páginas Amarelas da Veja em 23 de março de 1988. O Fonte83 relembra neste domingo (17) essa entrevista, onde ele conta como enxergava o Brasil na década de 80.
O que você veio fazer no Brasil?
Vim ver minha mãe, que está com 80 anos. Vim ver se o imposto de renda me devolve o que tirou na fonte. Vim falar português. Vim tomar ar puro, olhar o céu azul e sentir o cheiro de mato. Nova York é poluída demais e a gente se cansa do frio, se cansa de enfiar ceroulas e botas cada vez que saí à rua.
Qual a sua queixo do imposto de renda?
O imposto de renda me tira 45% na fonte e, como sou residente no exterior, não posso fazer nenhuma dedução. O Brasil é um país de parasitas, que persegue quem trabalha. Se descobrem que você trabalha, correm atrás de você o fiscal, a polícia, os ladrões. Falam mal de você. O Brasil me dá prejuízo.
Mas nos Estados Unidos o imposto de renda também não é pesado?
Isso é uma invenção brasileira. Hoje em dia, o máximo que se cobra da pessoa física nos Estados Unidos é 28%. E, para um artista, há deduções de gastos com piano, carro, vestimenta, maquiagem. Comparando com o Brasil, aquilo é um paraíso fiscal.
O fato de estar morando no exterior, de estar afastado das chamadas raízes brasileiras não prejudica a sua música?
Eu acho uma coisa formidável você de longe, a distância, poder contemplar sua calçada e seu quintal. O Guimarães Rosa, o Vinícius de Moraes, o João Cabral de Melo Neto e tantos outros escreveram muito quando estavam em outros países e não ficaram menos brasileiros. O Jorge Amado, que eu encontrei em Nova York lançando um livro dele – Tocaia Grande -, viajou em seguida para Paris, onde arranjou um apartamento para ficar escrevendo. E não é maravilhoso ele carregar a Bahia para Paris? Em matéria de raiz, o Jorge Amado já comeu toda a mandioca que podia. Como dizia o Carlos Drummond de Andrade: “Os senhores que me desculpem, mas, devido ao adiantado da hora, me sinto anterior a fronteiras”. Passarinho sempre voou – e nunca usou passaporte nem bilhete.
Como recebeu a notícia de que o Rio de Janeiro havia sido devastado pela chuva?
Soube pela televisão, pelos jornais e pela perplexidade dos americanos ao tomarem conhecimento de que pessoas viviam daquela forma no Rio. Não podemos atribuir a Deus uma catástrofe dessas. No Rio se corta o mato, chegam as chuvas de verão e a terra desliza. A enxurrada quase levou até a monha casa, no Jardim Botânico, em pleno centro da cachoeira. Estamos completamente erodidos.
Onde é mais fácil fazer sucesso: no Brasil ou nos Estados Unidos?
É mais fácil fazer sucesso no Carnegie Hall, em Nova York, do que no Maracanãzinho. Aqui, o cara já vai para o Maracanãzinho cheio de problemas, com todos os planos na cabeça, cruzados, congelamento, descongelamento. Isto aqui é uma brincadeira. Lá, as pessoas vão para o espetáculo sem preocupações.
O Brasil trata bem os seus artistas?
O Brasil precisa amar os seus artistas. Ficam dizendo que nós, músicos, somos milionários. Por que não se fala a verdade no Brasil? Por que não se diz que os ricos são os ricos? O rico é a Gal Costa, o Caetano Veloso, o Chico Buarque, o Tom Jobim? Aqui, inventam uma porção de coisas, há sempre a interferência muito grande do governo na vida particular do indivíduo. Eles querem saber o que é que você está fazendo, escutar no telefone, aquele negócio todo que tivemos desde 1964. Eu fui preso, o Chico Buarque também, todo mundo foi apanhado em casa. Eu não sou subversivo, pelo contrário, eu sou um sujeito nitidamente da ordem e do progresso. Agora, o que estou vendo aqui não é nem ordem nem progresso, pelo contrário.
Mas, mesmo com essas críticas, você continua gostando do Brasil?
Sim. Mas é preciso ter lucidez para falar do país. Porque, se a pátria é um negócio pelo qual você dá a vida, você morre e você é torturado, o que é que é isso? Isso não é a pátria. Como disse um amigo em Nova York: o meu país é aquele que me deixa viver, que mão me fuzila, que não me tortura, que me deixa educar meus filhos, onde posso exercer minha profissão, que me deixa fazer meus negócios. Você ama, ama, ama a pátria e depois como é que é? Cadê o piano? O Brasil importa metralhadora de todos os tipos e nós não temos piano para tocar.
Não há pianos no Brasil?
Atenção, juventude, para o meu conselho: a primeira coisa que o garoto deve fazer, se quiser ser músico, é arranjar um contrabandista. Se não for assim, não terá um instrumento decente.
Que outro conselho você daria a quem quer ser músico?
O garoto precisa saber também que música não é só um instinto sexual, não é comprar uma camisa vermelha e sair de moto, não é imitar o canto dos pássaros, nem sair tocando “bum-bum”, até furar a laje da casa ou do apartamento.
Você trabalha muito?
Trabalho mais do que mereço. Eu sou uma usina de música. Tenho mais de 500 músicas gravadas e faço questão de acompanhar todas as etapas do meu disco. Há horas que não quero trabalhar, prefiro andar na praia, sair para comprar um jornal, ver uma garota na praia – a distância e com muito respeito -, mas quase não dá, tanto aqui como no exterior.
Muita gente o criticou por ter cedido Águas de Março para os anúncios da Coca-Cola. Você fica magoado com isso?
Há quase dois anos eu não bebo. Só posso beber água, café ou refrigerante. A Coca-Cola se aproximou de mim para fazer um anúncio, eu achei ótimo, pois vejo todo mundo tomando Coca-Cola. Aí esses meus amigos – entre aspas, Jards Macalé, Antônio Houaiss e Luiz Carlos Vinhas – começaram a dizer que eu tinha vendido o Brasil à Coca-Cola. Essas pessoas resolvem que fazer anúncio para a Coca-Cola é pecado. Eu posso anunciar cachaça, Brahma Chopp, mas não posso cometer o pecado mortal que é anunciar Coca-Cola. Eu apenas licenciei o moto de Águas de Março. Todo o Brasil pode cantar tranquilamente essa música. O primeiro contrato foi por seis meses, e por aquele anúncio em que eu aparecia, aqui no Brasil, recebi 280.000 cruzados.
E de outras publicidades que você faz, as pessoas não reclamam?
Reclamam. Eu fiz também a campanha do “Rio, eu gosto de você”, o anúncio do Passaporte Brasil, para a Embratur, e vem sempre gente dizer: “Como é, você agora é garoto-propaganda?”. E o que eu vou dizer a essas pessoas? Eu posso dizer: “Não, garoto-propaganda é a sua mamãe”. Mas não vou dizer isso porque sou um rapaz educado.
Mas vendo você como um patrimônio da arte brasileira, um monumento da música, muita gente se espantou com o comercial da Coca-Cola.
Vamos ser objetivos, bem diretos. Vamos contar a verdade. o “seu” Tom Jobim está com 61 anos, andando de avião pelo mundo todo, indo para os Estados Unidos, Japão, Europa e várias cidades, dormindo cada dia num lugar, fazendo show – por quê? Porque o “seus” Tom Jobim está precisando de dinheiro, evidentemente. Se ele não estivesse precisando de dinheiro, ele não estaria viajando tanto. Eu não sou passarinho para viver pelos ares. Sou uma pessoa que tem grandes compromissos, ajudo gente, tenho uma família grande, fui casado uma primeira vez, sou casado pela segunda vez. Minha mãe é idosa, tenho de cuidar dessas pessoas que dependem de mim. Vou ganhar ainda esse dinheiro e depois não quero mais.
O Michael Jackson ganhou 10 milhões de dólares para fazer anúncio da Pepsi-Cola, não é?
Eu fico muito satisfeito com isso porque o Michael Jackson comprou os direitos dos Beatles. Isso é uma coisa fantástica. O Michael Jackson deve ser fã dos Beatles e vai cuidar bem da obra. Eu, se ganhasse um dinheiro desses, não 10 milhões de dólares, que é muita coisa para mim, mas 5 ou 4 ou 3 ou 2 ou 1 milhão de dólares, compraria a obra do Tom Jobim, a minha própria obra. Não quero terras nem fazendas. Dinheiro é muito bom quando você não tem que pensar nele. Eu compraria minha obra e iria editá-la toda direitinho porque está toda escrita errada. Iria corrigir as letras, as harmonias e as melodias e até o ritmo. Faria isso para poder morrer em paz. Se eu morresse agora, neste minuto, iria ficar um rastro de besteira incrível. No mais das vezes, esses editores nunca se preocuparam em editar música nenhuma, eles sempre quiseram foi ficar com os direitos autorais.
Está acontecendo uma renovação na música brasileira?
O Brasil é um país maravilhosamente musical, bem-dotado. Fala-se muito aqui da influência americana. Mas tenho ouvido Michael Jackson e aquilo está cheio de samba. Aliás, a música latina sempre fez parte da música americana. A música cubana toda foi assimilada pelos Estados Unidos. O Dizzy Gillespie ia a Cuba estudar pistão. Eles vêm aqui e ficam encantados. Mas é difícil ouvir músicas brasileiras porque aqui só se escuta rock.
O que você acha de estar incluído pelos críticos internacionais entre os compositores mais importantes do século?
Eu me sinto muito bem. Sou um cara humilde, não gosto muito de ipsilone, de coisa muito complicada. Sou um compositor popular e a minha mensagem é direta. Quando faço uma melodia, pretendo que ela seja ouvida, seja claramente entendida, que tenha contornos nítidos. O Villa-Lobos costumava dizer umas coisas para irritar as pessoas. Lembro que o pessoal estava numa fase de falar muito da esquerda. Aí o Villa disse: “Olha, o futuro do mundo, o que vem aí, é o socialismo, o comunismo, é claro. Mas, infelizmente, no momento eu não posso perder um mercado como os Estados Unidos”. Isso é o auge da gozação, Quando voltou para o Brasil, já muito doente, depois de operado em Nova York, deu uma entrevista. E a repórter perguntou: “Maestro, está compondo muito?”. E ele: “Não, minha filha, agora estou decompondo”.
Como você está se sentindo sendo pai novamente, agora aos 61 anos?
Ser pai é ótimo. Eu tenho meus filhos bem-criados. Graças a Deus, eles gostam muito de mim e eu gosto muito deles. São boas pessoas, Gente de bem – inclusive o Paulinho e a Elisabeth trabalham comigo. Agora tenho esses mais novinhos: João e Maria Luiza. Eu consegui chegar a uma certa simplicidade, pois meus filhos se chamam João e Maria, nomes bastantes simples e bonitos.
E como é a sua relação com João?
Excelente. Ele vai fazer oito anos em outubro. Ele é engraçado. Ao mesmo tempo que me admira, de vez em quando me esculhamba, me maltrata. Outro dia estava o Lobão cantando na televisão. Eu perguntei: “Como é João, você gosta disso?”. Ele disse: “Olha, o Lobão explode, você não chega nem a quebrar”. Ele esculhamba logo.
Ainda hoje há críticas que dizem que bossa nova não é música brasileira. Como você reage a isso?
A bossa nova é um negócio que apareceu com um baiano chamado João Gilbert, que é um cara de um talento genial. Aí vem um Paulo Francis e escreve: “A bossa nova é 50% jazz”. Mentira. É um troço brasileiro que surgiu aqui com Chega de Saudade, com uma introdução tipo choro, e não tem nada de jazz. Ao contrário, o jazz é que teve uma atitude aquisitiva em relação à bossa nova. Em 1962, Stan Getz já começava a improvisar com figuras de jazz sobre a bossa nova brasileira. O que é o jazz? É uma orquestra que tem saxofone, tem trombone? Então isso é o jazz. E nós estamos perdidos porque você não vai poder usar o telefone, tocar trombone, tudo é jazz. Se a bossa nova fosse jazz, nunca teria estourado nos Estados Unidos, como não estouraram o jazz francês, o jazz sueco, o jazz alemão.
Você parou de fumar cigarro e praticamente não bebe mais. Essa preocupação com a saúde seria medo da morte?
Não. Não tenho medo da morte. Mas acho preferível adiar esse problema, não tenho pressa. Antes, eu gostaria de botar os papéis em ordem. Já tenho dois testamentos feitos, um em Nova York e outro no Brasil. Mas, como o nosso país não tem memória, espero morrer só depois de escrever o meu cancioneiro. Só eu e meu filho Paulinho sabemos tudo das minhas músicas, de como devem ser tocadas. Tenho de botar tudo isso no papel. Por enquanto, é até bom a gente andar em aviões separados”.
Você gosta de tomar remédios?
Não, remédio eu não tomo. Eu estava com uma bursite, em Nova York, e aquilo incomodava, estava me atrapalhando tocar. Eu fui a uma loja de comida natural. Lá eu tenho mania de comer comida natural. Pedi aos indianos, donos da loja, uma pomada lá da Sumatra, que é um paliativo. Aí eles me deram um remédio, um antioxidante. Eu comprei dois vidrinhos, 25 dólares cada um. Tomei e melhorei muito. É feito com uma erva havaiana.
E a comida natural aqui no Brasil, você não come?
Um dos problemas do Brasil é a falta de honestidade: arroz integral é falsificado. O problema do Brasil é que nós não podemos fazer nem uma linguiça porque ela depende do que você põe dentro. Se colocar tudo que é porcaria, fica uma porcaria. Esse é o problema básico do Brasil. O problema do nosso país, infelizmente, é um problema de honestidade.
A fama o incomoda?
A liberdade derradeira do homem é andar como um ilustre desconhecido. Em Nova York, eu ando na rua, as pessoas me perguntam as horas, me tratam como um ser normal. Isso é muito confortável. Tem hora que o sujeito vem lhe fazer um elogio frontal e é uma coisa embaraçosa. À vezes, em Nova York, chega uma pessoa e diz: “Eu sei quem é você”. Outro dia, um cara me parou e disse que havia me visto na TV, sabia que eu era um compositor brasileiro, lembrava das músicas que eu cantei, falou que eu toquei piano na beira do mar. Mas não se lembrava do meu nome.
Como você definiria a sua fase atual?
Depois que a gente tem um distanciamento, depois que a gente fica assim destacado, um pouco marginalizado de si mesmo, devido à passagem dos anos e ao fato de você poder olhar certas coisas com mais tranquilidade, as coisas mudam. Muitos filósofos acham mesmo que, para ver bem uma coisa, a pessoa deve se distanciar um pouco dela. O Guimarães Rosa se tratava na terceira pessoa. Isso daí já é o distanciamento ideal. Ele dizia assim: “O Rosa está com sede, o Rosa quer água, o Rosa agora está cansado, o Rosa agora vai dormir, ele quer cama”. Infelizmente, ainda não cheguei a essa perfeição de me tratar na terceira pessoa. Mas não demora muito, não.


