Fonte83 relembra entrevista de Nicolas Sarkozy às páginas da Veja

Por Fonte83 - 09/08/2020

Presidente francês entre os anos de 2007 e 2012, Nicolas Sarcozy foi entrevistado pela revista Veja em 2011, com a jornalista Ana Cláudia Fonseca. Na conversa, ele falou sobre as relações da União Europeia com o Brasil. Veja abaixo.

O que pode ser feito para evitar que as revoluções árabes resultem em governos opressores de seu povo e hostis ao Ocidente?

 O que está ocorrendo no mundo árabe é histórico. Sem a ajuda de ninguém, com uma coragem incrível, esses povos derrubaram regimes em nomes de valores caros para nós, como liberdade, democracia, justiça e direitos humanos. Pela primeira vez na história, esses princípios podem triunfar em ambos os lados do Mediterrâneo.

Não acho que essas revoluções devem ser temidas. Na Tunísia e no Egito, nenhum manifestante gritou “abaixo o Ocidente” e não se ouviram palavras de ordem extremistas ou fundamentalistas. O que se pediu nas ruas foi respeito aos direitos básicos dos cidadãos. Obviamente, ninguém pode descartar cenários indesejáveis no futuro, mas para isso não ocorrer precisamos ajudar esses povos na transição para a democracia. A melhor forma de fazer isso é com apoio financeiro, técnico e humano.

Por que a França se recusou a receber tunisianos que tentaram emigrar para a Europa? 

Dissemos que aplicaríamos à Tunísia as regras de visto vigentes, nada mais, nada menos. A Europa tem um papel importante a desempenhar no processo de democratização do Norte da África. Refiro-me às questões de ensino e formação de jovens africanos. Dessa forma, poderemos apoiar a Tunísia, ajudando-a a proporcionar um futuro à sua juventude e impedindo a perda dos talentos de que tanto necessita. 

Além disso, não haveria pior cenário do que aceitarmos a chegada maciça de pessoas, as quais não teríamos condições de receber com dignidade.

A França sabe como evitar uma guerra civil na Líbia?

Pedimos a criação de Conselho Europeu Extraordinário para tratar do fim da violência e do resgate de estrangeiros no país. Estamos estudando a melhor forma de impedir Kadafi de continuar usando sua força aérea contra a população civil e o melhor modo de aliviar o sofrimento do povo líbio. 

Já começamos a enviar comboios comunitários para a região. O mundo precisa estar do lado do povo líbio nesta hora histórica, tão trágica e, ao mesmo tempo, cheia de esperança.

Um dos fatores econômicos das revoltas no mundo árabe foi a alta no preço dos alimentos. Como atacar esse problema?

O mundo tem, hoje, 1 bilhão de desnutridos, o preço dos produtos agrícolas disparou e nada nos garante que não veremos novas revoltas causadas pela fome ainda neste ano. A França é o país que mais fez esforços para reverter esse cenário. Em 2008, propus a criação de uma parceria global para alimentação e a agricultura. Depois, destaquei a questão como prioritária para a presidência francesa no G20 (grupo que reúne as principais economias desenvolvidas e emergente).

Alguns economistas dizem que a medida mais eficaz para acabar com a fome global é derrubar o protecionismo agrícola dos países ricos. O que a França pretende fazer a respeito na presidência rotativa no G20?

Para reduzir a fome o mundo temos, sim, de abrir nossos mercados aos países mais pobres. Foi o que nós, europeus, fizemos ao aprovar, em 2001, o programa Tudo Menos Armas, que liberou o acesso ao nosso mercado para produtos de países menos desenvolvidos, com exceção de armas e munições. Para estar à altura do desafio gigantesco que temos diante de nós, contudo, é preciso aumentar em 70% a população agrícola mundial, se quisermos alimentar 9 bilhões de pessoas que habitarão o planeta em 2050.

Isso significa que há lugar para agriculturas fortes, como a brasileira. Precisamos de vocês para alimentar o planeta, mas é necessário também lutar contra a excessiva volatilidade nos preços das commodities. Da mesma forma que regulamos os mercados financeiros, temos de regular os mercados agrícolas.

Como é possível regulá-los?

Primeiro, temos de aumentar a transparência nos mercados, principalmente em relação aos estoques. Segundo, precisamos regular melhor os mercados financeiros de commodities, definindo, por exemplo, regras básicas para conter abusos.

Terceiro, temos de criar instrumentos sólidos, como estoques de emergência, para enfrentar crises alimentares. Também é necessário abrir aos países mais pobres o acesso aos seguros, de modo que possam se proteger contra a alta de preços ou eventos que atinjam tragicamente as safras.

A regulação não pode ser um empecilho a mais ao desenvolvimento dos países de economia agrária?

De forma alguma. Não se trata de limitar o desenvolvimento da agricultura nem de impedir que países como o Brasil vendam seus produtos a preços interessantes. A prioridade é desenvolver a produção. Precisamos de agriculturas fortes, e o fato de o Brasil ser um dos celeiros do mundo é positivo.

Mas quem pode garantir que a atual alta das cotações dos alimentos não é uma ameaça à retomada econômica e à estabilidade global, se o preço da tonelada de trigo passou de 120 euros para 300 euros em seis semanas? Quem pode afirmar que a especulação não vem cumprindo um papel nesse cenário quando, em um único dia, um operador comprar 15% da produção mundial de cacau e revendê-la, embolsando a diferença na alta de preços que ele mesmo provocou, sem precisar tirar um centavo do bolso?

Não estou dizendo que se devam tabelar os preços. Quem define os valores são os mercados, mas eles têm de ser regulados porque, no fim das contas, quem paga isso é a população. Isso interessa inclusive às grandes agriculturas emergentes como a brasileira, porque a uma alta de preços brutal e desgovernada sempre se segue uma baixa brutal e desgovernada.

A França é o país que mais se opõe a um acorde de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia. Por quê?

Há mais de dez anos trabalhamos nesse acordo. Fomos até o limite do que poderíamos aceitar, principalmente no que diz respeito às questões agrícolas. Ir além significaria pôr em risco muitos produtores e agropecuaristas não só da França, mas também de outros países europeus. 

A União Europeia já vem dando abertura às importações agrícolas do Mercosul. Somos, de longe, o maior comprador do bloco. Sou a favor de um acordo, desde que ele seja equilibrado e o Mercosul esteja disposta a mostrar a abertura às solicitações europeias sobre serviços e indústrias. Respeito a determinação do governo brasileiro na defesa de seus agricultores, mas peço que tente entender a minha determinação. Não serei o presidente que deixou a agricultura francesa morrer.

Como a França viu, no ano passado, o apoio do Brasil ao direito do Irã de desenvolver um programa nuclear?

Nos apoiamos os esforços realizados pelo Brasil e pela Turquia na questão iraniana. A resposta do Irã à proposta brasileira e turca, no entanto, chegou tarde demais, quando já não fazia mais sentido. Por isso, nós, do Conselho de Segurança da ONU, adotamos novas sanções ao Irã.

Entendo que essa situação tenha criado certo ressentimento no governo brasileiro, mas nunca questionamos as intenções positivas do Brasil, e sim a protelação iraniana. A França jamais contestou o direito do Irã à energia nuclear civil. Mas os iranianos só multiplicaram os subterfúgios protelatórios e as provocação às propostas nesse sentido feitas pela comunidade internacional. 

Prosseguiram na proliferação nuclear e balística, ignoraram seis resoluções do Conselho de Segurança e dez da Agência Internacional de Energia Atômica. Hoje, ninguém pode afirmar seriamente que o programa iraniano de enriquecimento de urânio tem fins pacíficos. Ele foi criado na clandestinidade e não encontra nenhuma justificativa civil ou industrial. Existe apenas um reator no Irã, e os russos fornecem todo o combustível necessário. Para mim, a perspectiva de o Irã ter a bomba nuclear é inaceitável, pois seria um risco muito alto para a segurança da região e do mundo.

A demora da União Europeia em aceitar a adesão da Turquia ao bloco não a está empurrando para os braços do Irã?

A ideia e um grande país como a Turquia definir sua política externa exclusivamente em função da integração com a União Europeia me parece não apenas uma extravagância, mas um desrespeito aos turcos. A Turquia tem uma diplomacia muito ativa na região. Sempre defendi a ideia de que a Turquia e a União Europeia precisam desenvolver uma aproximação maior, mas sem chegarmos até a integração, que não traria benefícios a nenhuma das partes.

A Turquia tem um papel único, que nunca foi tão relevante para o mundo quanto agora: ser uma ponte entre o Ocidente e o Oriente. Para continuar desempenhando tal papel, deve manter essa posição única, de onde tira sua força.

A França apoia a candidatura brasileiro a um assento permanente no Conselho de Segurança?

Sim. Primeiro, porque o Brasil já é um protagonista global e o será cada vez mais. Tem peso, capacidade e, principalmente, vontade de contribuir para a estabilidade mundial. Isso pode ser visto no Haiti, onde o Brasil é a espinha dorsal da missão de paz da ONU.

Segundo, se quisermos que o conselho continue sendo a principal instância para a segurança e a paz internacionais, ele precisará ser mais representativo do equilíbrio mundial. Os países emergentes devem ser mais bem representados ali. A reforma do Conselho de Segurança não deve ser protelada. É uma questão de legitimidade e eficiência da própria ONU.

Por isso a França, junto com a Inglaterra, propôs uma reforma interina do Conselho, possibilitando a ampliação agora e e dando a alguns países um mandato mais longo como membros não permanentes. Seria uma etapa rumo à ampliação definitiva.

Que justificativa do governo brasileiro o senhor recebeu por ele ter voltado atrás na compra dos caças franceses Rafale, dada como certa pela gestão anterior?

O governo brasileiro disse que precisa de mais tempo para tomar uma decisão tão relevante, e entendo perfeitamente essa necessidade. Trata-se de uma escolha estratégica, que significará um compromisso pelos próximos anos. Não vejo essa decisão como um retrocesso e não estou preocupado, porque tenho certeza que a oferta francesa é a mais adaptada às necessidades brasileiras.

Primeiro, porque o Rafale é o avião de caça com o melhor desempenho e a maior versatilidade no mercado. Segundo, porque já mostrou seu valor em missões militares. Terceiro, porque a oferta que fizemos é acompanhada de transferência irrestrita de tecnologia, garantida pelo Estado francês, o que nenhum dos outros dois concorrentes tem condições de fazer com credibilidade.

Relações simples de fornecedor e clientes estão ultrapassadas. Essa cooperação com os caças deve também contribuir para o desenvolvimento da indústria de defesa do Brasil. O objetivo de independência e soberania é considerado legítimo pela França, pois foi o que norteou o desenvolvimento de nossa própria indústria de defesa.