Economia e imperialismo: Leia entrevista de Fidel Castro à Veja em 1987

Por Fonte83 - 28/06/2020

Um dos ícones mais controversos do século XX, Fidel Castro governou Cuba por 49 anos. Em 1987, ele concedeu entrevista à Veja e falou sobre economia, pagamento da dívida externa dos países subdesenvolvidos e a relação que manteve com o Brasil. Veja na entrevista abaixo concedida ao jornalista Elio Gaspari.

Passados 22 anos, o governo brasileiro restabeleceu as relações diplomáticas com Cuba, rompidas ao tempo do presidente Castello Branco. O que representou para o senhor o período de rompimento e o que representa agora o reatamento?

Nós estávamos metidos numa batalha com os Estados Unidos, e todos os países da América Latina, exceto o México, seguiram a política de Washington. Brasil, Uruguai e Chile resistiram quanto puderam, mas ao fim dobraram-se e juntaram-se ao bloqueio. Naquela época, o domínio e a influência americanos eram tais que eles conseguiram. Os rompimentos tinham apenas importância moral e política, mas não econômica, pois o peso estava nas reações com os Estados Unidos. Foi um golpe político, mas a posição da América Latina – exceto o México – ante os Estados Unidos agravava o perigo contra Cuba.

Foi uma época na qual nos vimos sós, mas nós estávamos dispostos a resistir a qualquer preço. Isso tudo pertence a uma etapa triste do passado que não voltará a se repetir-se. A guerra suja contra Cuba e a invasão da República Dominicana, em 1965, destroçaram a OEA. Hoje, nem há mais quem fale dela. Na Guerra das Malvinas, os próprios Estados Unidos deram-lhe o último pontapé. Com a hostilidade dos Estados Unidos com o governo da Nicarágua, já se vê hoje uma América Latina diferente, que não vi mais a reboque de Washington. Há mais consciência, os tempos mudaram consideravelmente.  

Foram anos duros, mas fomos capazes de sepultá-los. Não guardamos nenhum agravo, nenhum ressentimento. Era uma situação histórica que hoje não existe mais. Hoje, a população do nosso continente é o dobro da que existia na quela época, os problemas sociais se agravaram e há ainda uma dívida de 400 bilhões de dólares. Veja só o tamanho da mudança. Nos anos 60, o presidente americano John Kennedy lançou a sua Aliança para o Progresso, um programa considerado ambicioso. Pois bem, ele previa investimentos da ordem de 20 bilhões de dólares, em todo o continente, ao longo de dez anos.

Hoje, devemos vinte Alianças para o Progresso e pagamos a cada ano mais do que uma Aliança em juros. Os tempos mudaram, e os políticos latino-americanos perceberam isso. Com relação à decisão do governo brasileiro, só temos razões para ficar satisfeitos. Agradecemos muito esse gesto do governo democrático do Brasil e avaliamos nossas relações como uma das questões mais importantes da nossa política externa. Estamos tão confiantes que cedemos uma das melhores áreas da nossa capital para que nela o Brasil construa a sede de sua embaixada, que resultará de um projeto do arquiteto Oscar Niemeyer.

Passados os anos também noutra direção, como o senhor avalia hoje a posição do governo de Cuba entre fins dos anos 60 e início dos 70, quando prestou ajuda material a organizações clandestinas da esquerda brasileira estruturadas para formar guerrilhas e acusadas de práticas de terrorismo nas cidades?

Nós já falamos do que ocorreu, da política dos Estados Unidos de nos bloquear. Estávamos numa luta de morte com a potência imperialista mais poderosa do mundo. Estávamos lutando por nossa vida. Víamos os Estados Unidos e todos os países da América Latina – exceto o México – em guerra contra nós e a nós numa guerra contra os demais. Acho que não vale a pena resolver o passado e buscar agravos mútuos.

Explico apenas o estado de ânimo com que apreciávamos aqueles acontecimentos e víamos como inimigos os que seguiam aquela política. Podem ter interferido enfoques teóricos ou doutrinários – não o nego -, mas nossa política externa estava influenciada pela situação. Talvez houvesse alternativa, talvez até alternativas melhores, mas o certo é que nos considerávamos militantes contra os governos latinos-americanos que se juntaram à política de isolamento acionada contra nós. Contudo, com o passar dos anos, todos ganhamos experiência.  Tanto nós quanto os dirigentes latino-americanos. Temos mais maturidade. Mais coisas de interesse comum, mais causas que nos unem.

Nossa vitória estará sempre em derrotar as tentativas dos Estados Unidos de nos dividir. Devemos buscar o máximo de unidade possível, a despeito de nossas diferentes concepções políticas e econômicas. eu acho que é esse o espírito de interesse, entendimento e cooperação que levou ao restabelecimento de relações entre o Brasil e Cuba. Não quero emitir juízos sobre atitudes e acontecimentos históricos. Acho que outros homens, no futuro, poderão analisar o que aconteceu nesse período de nossa história.

Em 1960, logo depois de descer da serra, a primeira embaixada estrangeira que o senhor visualizou foi a brasileira. Foi a uma recepção levando seu fuzil e deixou-o na entrada. Pouco depois, o senhor foi ao Brasil. Agora que o senhor já tem uma nova embaixada brasileira em Havana, é razoável supor que o próximo passo seja uma ida ao Brasil?

Bem, eu já não vou aos lugares de fuzil. Nos anos 60, nós nos comportávamos como guerrilheiros que tinham acadado de descer da montanha. Quanto a voltar ao Brasil, não devo expressar meus sentimentos, pois poderia colocar numa posição delicada o governo brasileiro. Poderia dar a impressão de que desejo ser convidado. Posso lhe dizer que no dia em que o governo brasileiro achar útil, e aos interesse da América Latina, terá como fazer-me saber. 

Até lá, não devemos adiantar-nos aos acontecimentos. Eu sempre atuarei na forma que mais convenha às nossas relações e aos interesse do Brasil. Sinto pelo Brasil um grande respeito, uma grande admiração e um sincero carinho.

O senhor sustenta que a dívida externa do Terceiro Mundo deve ser esquecida pelos credores. Poderia explicar como isso pode ser feito?

Bem, em primeiro lugar, eu sustento que a dívida já foi paga. Ela foi paga através do subdesenvolvimento. As grades potências credoras enriqueceram através dos séculos à custa do Terceiro Mundo. Os países industrializados da Europa, no período colonial, saquearam nossos recursos, aniquilaram nossa população e drenaram nosso ouro e prata. Eles acumularam riquezas para se desenvolver e nos ficamos atrasados. Você pode dizer que essa é uma razão remota, histórica. Pois passemos à segunda: o fenômeno do intercâmbio desigual.

Trata-se de um fenômeno que, pela sua constância, poderíamos chamar de lei. É algo muito simples: os produtos dos países subdesenvolvidos, hoje conhecidos como países devedores, custam a cada ano menos no mercado internacional enquanto os produtos dos desenvolvidos, os credores, custam cada vez mais caros. Quer números? Pois bem. Em 1960, você vendia 1 tonelada de café e, com o dinheiro obtido, comprava 37,3 toneladas de fertilizantes. 

Em 1982, com a mesma quantidade de café, recebia apenas 15,8 toneladas de fertilizantes. Em 1959, com 6 toneladas de juta podia-se comprar um caminhão. Em 1982, Você precisava de 26 toneladas de juta. Esse é um processo histórico que vem dese o fim da II Guerra. Mas o círculo perverso não termina aí. Não é só o mecanismo de funcionamento do mercado que é desigual, mas esse mesmo mecanismo de comércio industrial que é posto a funcionar de uma forma sufocante para o Terceiro Mundo.

Frequentemente, ele se fecha, tangido pelo protecionismo dos mais desenvolvidos. Esse é o caso, por exemplo, do crescimento da agricultura subsidiada na Europa. Vocês, brasileiros, conhecem bem outro aspecto do protecionismo. Vocês sabem melhor do que todo o que é isso. Fabricam sapatos e, quando começam a vendê-los no mercado internacional, veem-nos gravados por taxas. Vocês fabricam o aço e eles impõem restrições. O mercado existe na hora em que você planeja sua produção, mas se fecha quando você começa a produzir. Se os fatores que eu mencionei abalam a produção dos países subdesenvolvidos, ainda surgem outros para abalar-lhes as finanças.

A manipulação do dólar, por meio da elevação dos juros, fez com que o Terceiro Mundo tomasse emprestado dólares baratos para ter de pagá-los caro Todos esses fatores reunidos fizeram com que a economia de muitos países, debilitada, fosse atacada pela inflação e pela consequente desconfiança em relação ás moedas chamadas fracas. Resultado: muitos dos dólares tomados emprestados ficaram pouco tempo em muitas partes do Terceiro Mundo. Logo que puderam, sob a forma de evasão de capitais, esses dólares fugiram de volta para os países desenvolvidos.

Essa sua visão pode encontrar adeptos, mas, considerando-se que do outro lado do guichê estão os credores, o senhor acha que o presidente do Citicorp endossaria esse tipo de análise, de forma a conseguirmos a solução do problema da dívida?

O presidente do Citicorp não vai propor nunca coisas semelhantes às que eu proponho. Mas, como quem tem o problema são os países do Terceiro Mundo, eu proponho.

Os banqueiros argumentam, contudo, que não foram eles que provocaram problemas como a inflação nas economias subdesenvolvidas. 

Isso é um mito. A inflação do Terceiro Mundo foi exportada. Durante mais de uma década os Estados Unidos fizeram a Guerra do Vietnã gastando bilhões de dólares, sem criar um único imposto. Eles simplesmente imprimiram dólares. Por meio de um processo de manipulação, eles imprimiram cada vez mais dinheiro e diziam que mantinham o dólar ligado ao valor do ouro.

Pagaram a guerra, compraram meio mundo e, quando acharam que a situação não mais lhes convinha, anunciaram que abandonavam o padrão-ouro. O que quer dizer isso? O sujeito tinha um papel que, segundo lhe diziam, valia ouro, que teoricamente poderia ser trocado por ouro e, de uma hora para outra, vem o país que lhe vendia o papel e avisa que não tem mais nada a ver com o ouro. Isso foi um roubo universal. E é aí que vamos encontrar uma das fontes da inflação do Terceiro Mundo.

Para os países devedores, a questão não é apenas deixar de pagar o principal das dívidas ou mesmo os juros. Trata-se de não pagar o principal, adiar o pagamento dos juros e, ainda assim, conseguir que os credores, que não receberam o que havia emprestado, passem a emprestar mais, o chamado “dinheiro novo”. Como o senhor acha que seja possível conseguir esse dinheiro, nessas condições? 

É possível. Eu trato esse aspecto através de um raciocínio integral. Associo a questão da dívida à questão da paz. Não faço essa associação porque quero, mas porque ela está em nossa vida. A paz em nosso mundo está ligada à esperança de desenvolvimento, à solução da dívida. Há bilhões de pessoas vivendo em terríveis condições, sem casa, sem comida, sem futuro para os filhos. E de onde deve sair o dinheiro para o desenvolvimento dessa parte do mundo? Deve sair dos países desenvolvidos, inclusive os socialistas. 

Não se pode culpar a União Soviética pelo subdesenvolvimento na Ásia, mas mesmo os países socialistas têm contribuição a dar. E de onde, precisamente, deve sair o dinheiro? Da corrida armamentista. Com apenas 20% do que se gasta em armas, pode-se resolver o problema da dívida e do subdesenvolvimento. Falo em algo em torno de 200 bilhões de dólares anuais. Então faça a conta: a abolição da dívida, o fim do intercâmbio desigual e a nova ordem internacional podem significar para o Terceiro Mundo mais de 200 bilhões de dólares. Como vê, uma pequena parte do que se gasta em armas.

Esse é o dinheiro novo de que você fala, consumido hoje para ameaçar a paz. Eu não defendo a ruína do sistema financeiro internacional. Não defendo a quebra dos bancos. O que eu defendo é que os governos dos países credores sejam responsáveis pela dívida. Não defendo sacrifícios nem novos impostos para os países desenvolvidos. Pelo contrário, eu proponho a utilização correta de uma parte dos recursos que se malversam absurdamente e que, em certa medida, são fruto do intercâmbio desigual. Se os países subdesenvolvidos dispuserem desses recursos que mencionei há pouco, como consequência o poder aquisitivo dos países do Terceiro Mundo se elevará extraordinariamente. E o mundo capitalista desenvolvido terá achado um caminho para o seu problema de produção e emprego.

Sua linha de raciocínio é lógica, mas admita que existe a forte possibilidade de ela não ser aceita pelos países desenvolvidos ou pelos banqueiros. Nesse caso, volta-se à pergunta: como conseguir o chamado dinheiro novo?

Eu digo de novo onde se pode conseguir esse dinheiro. Entre 1982 e 1986, no capítulo do juros e do serviço da dívida, os países da América Latina transferiram 131 bilhões de dólares do mercado do bolso de quem não tem para o bolso de quem tem. São 30 bilhões de dólares por ano. Em 1986, não houve dinheiro para a dívida, mas só para uma parte dos juros. Pois bem, em 1986 os países da América Latina pagaram 30,7 bilhões de dólares em juros e serviços e receberam capitais no valor de apenas 8,6 bilhões. 

Ou seja, tiveram um saldo negativo de 22,1 bilhões. Então não se diga que de parte da América Latina não foram feitos esforços. Fizemos esforços e sacrifícios enormes. Exportamos mais, importamos menos. Só que isso é como jogar água numa cesta. Se você paga mais do que tem na carteira, fica sem reservas. Então de onde pode vir o que você chama de dinheiro novo? Exatamente do canal pelo qual está indo embora. Nós não precisamos desse chamado dinheiro novo, o que precisamos é de dinheiro líquido – de dinheiro, simplesmente. 

O dinheiro que nos falta é o que poderíamos aplicar se não o transferíssemos. O que estamos mandando para fira é suficiente para resolver nossas necessidades de desenvolvimento.

O senhor tem uma dívida externa estimada em 3 bilhões de dólares no mercado capitalista e tem sido um pagador razoável. Além disso, enfrentando uma crise de divisas, o senhor tomou medidas drásticas na economia cubana. Organizou o crescimento a taxas menores que as dos anos passados, cortou as importações pela metade e, para conseguir isso, freou o consumo a ponte de ter reduzido o arroz nos refeitórios operários. Nesse quadro, não estaria praticando uma política de “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”?

O caso de Cuba é diverso, em alguns aspectos, daquele dos demais países devedores. Ainda que seja diverso só em alguns aspectos, é diverso. Como todos os demais países, fomos vítimas do colonialismo e do sistema de intercâmbio desigual. Também somos vítimas do protecionismo. Mas, à diferença dos outros países, sofremos um bloqueio econômico e, por outro lado, não tivemos fuga de capitais. Daqui de Cuba, o dinheiro que não prestava já fugiu há muito tempo. Hoje, não foge mais. Aqui o dinheiro não foi malversado nem desperdiçado. 

O que veio para cá foi investido no desenvolvimento do país. Também nunca foi fácil emprestar dinheiro para Cuba. Os bancos e os países desenvolvidos que o fizeram desafiaram os Estados Unidos. Além disso, temos dois tipos de dívida. Devemos Devemos aos países socialistas mais de 10 bilhões de dólares e com eles não temos problemas. Em primeiro lugar, porque com o mundo socialista não há intercambio desigual. 

O preço do nosso açúcar aumenta proporcionalmente ao que nos custam as importações. Não só contratamos preços justos, como a relação de troca é satisfatória. No aspecto específico da dívida com o nundo socialista, conseguimos renegociá-la, com muitos anos de carência e sem juros. Ademais, a dívida não nos bloqueou créditos. Como nossa economia se desenvolve em mais ou menos 90% com países socialistas, dependemos do mercado ocidental em cerca de 10% ou 12% das nossas relações econômicas.

Assim, os problemas que afetam os demais países não nos atingem da mesma maneira. Apesar disso, a relação com os países capitalistas desenvolvidos para nós é muito importante. Importamos pelas industriais, alguns alimentos, tecnologia e uma série de produtos necessários a nossa economia. Pode ser uma relação pequena, mas é importante. Só nesse sentido é que somos dependente desse nefasto mercado ocidental, com suas leis tenebrosas. 

Digo isso para que você entenda que a posição de Cuba no cenário internacional não é um problema nacional, de interesse próprio. Desde 1972, eu falo do problema da dívida porque ela nos leva a uma posição de solidariedade ao Terceiro Mundo. Cuba vinha cumprindo todas as condições financeiras dos empréstimos porque elas não afetavam o seu desenvolvimento, até que, no primeiro trimestre de 1986, nossa posição foi alterada drasticamente. Como exportadores e reexportadores de petróleo, perdemos quase 300 milhões de dólares com a queda do preço do barril. 

Ao mesmo tempo, o dólar perdeu quase 40% do seu valor e, como nós não comerciamos com os Estados Unidos vimo-nos cada vez mais operando com moedas fortalecidas na Europa Ocidental. Além do mais, tivemos dois anos de seca e um ciclone que atravessou o país de um extremo ao outro no fim de 1985. Diante disso, fomos obrigados a suspender o pagamento dos juros em meados de 1986. Negociamos, formalmente, por não há alternativa. Ainda assim, não podemos continuar pagando. Nossa dívida também era impagável.

No plano interno, com a redução das exportações em 50%, tomamos medidas de austeridade na nossa economia.  Estamos conseguindo a proeza de devolver o país com metade das importações. Nunca fizemos um esforço tão grande. Ele é quase tão grande quanto os primeiros anos de revolução. Tomamos para isso algumas medidas decisivas.

Decidimos não sacrificar o consumo da população nem o desenvolvimento. Então, se todos os jovens entre 12 e 18 anos recebiam meio litro de leite por dia, passaram a receber só um terço. Se os restaurantes de trabalhadores davam um terço de litro, passaram a dar um quarto. mas, então, por que eu digo que não se sacrificou o consumo? Porque as crianças com menos de sete anos continuam recebendo o mesmo litro de leite que sempre receberam, porque na cesta básica de alimentos da família cubana continuam, pelo mesmo preço, os mesmos produtos. 

É verdade que houve alguns aumentos. A eletricidade subiu, mas está hoje no mesmo preço em que estava há trinta anos. O transporte público cubano passou de 5 centavos para 10. Dobrou e, provavelmente, ainda é o mais barato do mundo. Ao mesmo tempo, porém, aumentamos as pensões dos aposentados, elevamos o salário mínimo para 100 dólares e aumentos outros salários.

O seu salário e o dos ministros foi aumentado?

Não.

Essas mudanças na economia não lhe trouxeram o risco da impopularidade?

Não. Antes de tomar uma medida dessas, o nosso governo medita muito bem. O assunto é bem analisado, quer no partido, quer no Estado. Além disso, tomamos o cuidado de explicar bem ao povo o que estamos fazendo. Damos ao povo informação plena de que as medidas são tomadas em benefício próprio. Sempre encontramos a compreensão. E não é à toa. Afinal, trabalhamos para ele há muitos anos. Teria sido preferível que não tivéssemos necessidade de fazer sacrifícios, como seria preferível que nenhum país subdesenvolvido tivesse de fazê-los.

Há muitos anos nossa posição era formar uma frente com os países do Terceiro Mundo. Infelizmente, essa frente não se formou. Os credores sempre utilizaram todos os seus esforços pra evitar essa unidade, e com isso dividiram os países do Terceiro Mundo. Prevaleceu a tática dos credores de nos dividir.

Com a moratória brasileira, essa situação está alterada? O senhor não acha uma ironia da história que em 1960 os Estados Unidos tenham iniciado um processo de guerra aberta contra Cuba por causa das expropriações de 1 bilhão de dólares e, 27 anos depois, estejam diante de um cenário no qual arriscam quase 100 com o Brasil?

As duas situações são diversas. Em 1960, surgiram aqui revolucionários que tomaram medidas pelo bem do povo cubano. Não expropriamos nada. Queríamos apenas mudar a nossa situação interna. Em troca, os Estados Unidos cortaram nossos suprimentos de combustíveis, quiseram acabar com a revolução. Suspenderam a cota de açúcar. Organizaram uma guerra suja que incluía planos para assassinar dirigentes cubanos. Tentaram nos esmagar. 

Não fizemos expropriações a priori. Fomos aplicando-as progressivamente, à medida que os Estados Unidos nos agrediam. Não tínhamos alternativa.  Se não tivesse sido assim, talvez tivéssemos tomado outras medidas, talvez as expropriações com indenização. Hoje, o bloqueio que eles nos impuseram custou-nos mais de 10 bilhões de dólares. Então, nada lhes devemos. São eles que nos devem. No caso do Brasil, não havia alternativa se não a suspensão do pagamento dos juros. Dizer que o Brasil tenha dado um passo hostil, que tenha buscado um confronto, é equívoco.

O Brasil estava pagando cerca de 40% de suas exportações para cobrir juros da dívida. Em 1981, seu país pagou mais de 10 bilhões de dólares entre juros, serviços e utilidades. Em 1985, vocês tiveram um saldo de 12 bilhões de dólares na balança comercial. Em 1986, esse saldo foi de 10,5 bilhões. Praticamente tudo o que o Brasil economizava ia embora entre juros e serviços. Numa situação dessas, como um país pode continuar crescendo? As reservas cambiais estavam se esgotando. Em um ano, caíram para a metade. O Brasil não declarou guerra. Expressou sua disposição de negociar.

O país quer buscar formulas para se desenvolver. Como se pode duvidar disso? A suspensão do pagamento dos juros pelo Brasil é um acontecimento histórico. Foi um passo enérgico e valente para fazer prevalecer os interesses do país acima de tudo. O próprio Tancredo Neves, na sua campanha e ao ser eleito, disse que não pagaria a dívida com a fome do povo. É um princípio digno e respeitável. Uma decisão justa, moral e patriótica.

Sua experiência sugere-lhe algum desdobramento previsível para a decisão brasileira?

Os credores vão tentar apagar o fogo. Vão tentar evitar que o fogo se espalhe. Já expressaram melhor disposição para atender pedidos de outros países, para isolar o caso do Brasil. Meu ponto de vista, que sustento há anos, é que o país que se visse obrigado a tomar uma decisão dessas deveria receber toda a solidariedade da América Latina e do Terceiro Mundo. Merece também o apoio dos países socialistas e dos países desenvolvidos que não foram potências coloniais nem se caracterizaram como potências imperiais.

Parto também do critério de que não se pode aplicar represálias ao Brasil. Se represálias não deram resultado contra Cuba, não haverão de dar contra o Brasil. Seria o mesmo que tentar apagar um incêndio jogando gasolina sobre o fogo. O Brasil não está defendendo só os seus interesses, mas os de todos os devedores. Não se trata de uma batalha dos brasileiros, mas de todo o Terceiro Mundo. Os êxitos que vierem a ser obtidos pelo Brasil nessa luta serão benéficos para todos os demais devedores.

Sim, mas os credores querem receber do Brasil e o Terceiro Mundo não pode ajudá-lo a pagar.

Entenda que o problema não foi criado pelo Brasil, mas por um sistema econômico em crise, em crise total. Eu sempre disse que essa crise iria explodir. E aí está ela, diante de nós, explodida. Veja que ninguém fala em pagamento da dívida. Ela nem é discutida. Já se transformou numa esperança dos credores.

O que eles discutem são os juros, e muitos países já não podem pagar nem uma parte desses juros. O que sucedeu foi que há algum tempo os credores passaram a emprestar dinheiro exclusivamente para que se pagassem os juros de uma dívida que não podia ser paga. Se em 1985 a dívida era de 360 bilhões de dólares, agora ela está em 400. Ela se tornou um câncer, que cresce descontroladamente. 

E não estou falando em termos políticos. Isso que lhe disse é pura matemática. No fim das contas, não se pagarão nem a dívida nem os juros. Ela é impagável, incobrável. É um absurdo político, econômico, moral e matemático.